terça-feira, 26 de junho de 2012

Da Fonte da Pipa à Arialva, passando pelo Olho de Boi (2/3)

Continuação de:
Da Fonte da Pipa à Arialva, passando pelo Olho de Boi (1/3)
(*) revisto em 2-7-2012
(**) revisto em 20-9-2012
(***) revisto em 14-2-2013
(****) revisto em 25-4-2013

Fortes da Fonte da Pipa e da Arialva
(Antigo Forte da Fonte da Pipa / Hospital dos Marinheiros Ingleses)

Tem-se colocado sempre algumas dúvidas sobre a localização exata de alguns dos fortes que no reinado de D. Pedro II se edificaram na margem sul do Tejo, nomeadamente sobre se os Fortes da Fonte da Pipa e da Arealva seriam um único que teve designações diferentes em épocas diferentes, como parece afirmar Pereira de Sousa no seu Fortalezas de Almada, ou se pelo contrário seriam efetivamente edifícios diferentes.

João Baptista de Castro, cuja família era originária de Almada, descreveu em 1763, no seu Mappa de Portugal Antigo e Moderno, Tomo II, p. 376, as «Praças e Fortes marítimos que estão fundados no rio Tejo para a banda do Sul»:
Forte de Cacilhas
Forte de Arialva
Forte da Fonte da pipa
Fortaleza de S Sebastião de Caparica ou Torre velha que cruza com a de Belém. Está assentada na escarpa de hum monte com varias baterias.
Forte da Trafaria
Fortaleza de S Lourenço da Cabeça seca ou Torre do Bogio de figura circular Está no meyo da barra de Lisboa.

Esta descrição parece confirmar a tese dos dois fortes, embora a ordem da descrição possa induzir a alguns erros, e de facto encontrámos recentemente dois assentos de óbito da Paróquia do Castelo de 1710 e 1711 que reforçam esta tese:
(1710) «Em sete de Novembro de mil e setecentos e dez faleceo António solteiro, morador no Forte da Fonte da Pipa …»
(1711) «Em os vinte e sete de Abril de setecentos e onze faleceo hu prezo dos que vierão do Limoeiro de Lx.ª em o Forte da Arialva, chamado Domingos Affonço (sic) homem solteiro natural de Monte Argil, termo da Comarca de Santarém (…)»
(ADS-PRQ, Almada, Castelo, Óbitos, Lv. 3)

Recordo que Pereira de Sousa diz na sua obra que «No reinado de D. Pedro II procedeu-se à construção do Forte da Foz (Vigia), Forte da Trafaria, Forte da Fonte da Pipa (Arealva) e reedificação do Forte de Santa Luzia (Cacilhas). Do Forte da Fonte da Pipa restam ainda panos de muralha e uma porta de mar. O Forte foi abandonado no último quartel do Século XVIII (?), época em que se construíram ao longo da praia vários edifícios, alguns de boa traça pombalina, servindo talvez da residência aos proprietários dos armazéns de vinhos aí estabelecidos. Na porta de mar encontramos ainda um nicho de S. João Baptista» (vd. R.H. Pereira de Sousa, Fortalezas de Almada e seu Termo, Almada: Arquivo Histórico, 1981, pp. 56, 77).
E mais diz na descrição do «FORTE DA FONTE DA PIPA: De acordo com a argumentação que adiante se exporá, o forte designado em documentos oficiais por «Forte da Fonte da Pipa» é aquele localizado no lugar actualmente denominado Arealva.
A ausência de qualquer prova documental quanto à existência simultânea de dois fortes próximos entre si - Arealva e Fonte da Pipa - levou-nos a suspeitar que existiria apenas um forte. Nas pesquisas efectuadas julgamos ter confirmado as nossas suspeitas, a partir dos seguintes factos: Castelo Branco cita como artilhado em 1711 o forte da Fonte da Pipa, nenhum dos outros citados se confunde com qualquer fortaleza eventualmente próxima. Ora, o forte a que chamamos da Arealva é obra anterior àquele ano a avaliar pela construção, pelo que teríamos de admitir que estava desartilhado, o que é pouco crível, pois o forte não teria sequer um século e era pois na sua época uma construção actualizada.
O forte designado oficialmente por forte da Fonte da Pipa, foi objecto de obras de reparação no ano de 1771 que importaram em 154.320 réis como se lê em documento subscrito pelo sargento mor Pedro Gualter da Fonseca; a quantia é muito elevada para reparação de um pequeno fortim como tem sido definido o presumível forte da Fonte da Pipa, mas aceitável para o forte situado na Arealva».
(Id., ib., pp. 78-81).

Sabemos que as fortalezas da ribeira de Lisboa desta banda do Tejo foram edificadas no reinado de D. Pedro II, provavelmente a partir de 1689, pois em 27 de Março desse ano D. Pedro II concede uma mercê para fossem feitas obras na Fonte da Pipa à custa das obras reais (Chancelaria de D. Pedro II, cit. Luís de Barros, in Cronologia), tendo a partir de 1701 a assistência do ENGENHEIRO MANUEL DA MAYA «tomando as alturas e examinando os materiaes e fazer os riscos das plantas das ditas obras com muito acerto e ajudando em todas ellas ao Lente das fortificações, FRANCISCO PIMENTEL [(1652-1706), filho de Luís Serrão Pimente]» cfr Carta régia de 1758 (vd. Cristóvão Ayres, Manuel da Maya e os engenheiros militares portugueses (1910) in: http://purl.pt/848/3/ - cit.

Hospital dos Marinheiros Ingleses na Margem Sul

Um Decreto de D. Pedro II, datado de 22 de Maio de 1705, determina que «os soldados e marinheiros inglezes das armadas d'esta nação que vêem a este porto e forem doentes, se curem nas casas do forte, que se edificaram no sitio da Fonte da Pipa, que fica da banda d'além do Tejo, para lhes servirem de hospital» (vd. AHML, Liv.º X de reg.º de cons. e dec. do sr. rei D. Pedro II. fs. 78, in Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do Município de Lisboa, T. 10, p. 276 – cit. Alexandre M. Flores, Chafarizes de Almada, nota n.º 30).
Este Hospital de Marinheiros Ingleses estabelecido no Forte da Fonte da Pipa desde 1705 é referido em outros documentos com ainda existente nesta margem em 1711 e 1713, como regressado a Lisboa em 1734 e de novo estabelecido na margem do sul em 1745.
(Vd. A.H. de Norris – The British Hospital in Lisbon, Lisbon The British Historical Society of Portugal, 1973; et Com. E. Gomes – «Vigia da História», Revista da Armada, (Publicação Oficial da Marinha) no seu nº 459 Ano XLI de Janeiro 2012)

Na realidade, em 1735 já vivia no Forte da Fonte da Pipa, com a sua mulher, um Manuel Antunes Simões, tanoeiro, que nesse ano toma de aforamento, por 800 réís anuais, à Câmara Municipal de Almada, um «chão baldio no dito sítio (da Fonte da Pipa) que corre do Tanque em que bebem as bestas até defronte da porta principal do dito Forte» (AHMA – Escrituras da CMA, Livro n.º 1801, f. 7), os quais ainda aqui residiam em 1752, pois nesse ano tomaram 400$000 réis de empréstimo aos Frades de São Paulo de Almada «para a fábrica e aumento das suas fazendas» (ADS, Cartórios Notariais de Almada, Liv. 102, f. 124v). Parece assim claro que o Hospital Inglês novamente estabelecido em 1745 na margem sul, não seria no Forte da Fonte da Pipa. (****)

Em 1745 regista-se no Rol de Confessados da Caparica alguns moradores da freguesia residentes num Hospital da Marinha Inglesa próximo da Banática e de facto aparece nos Livros de Óbitos da Caparica (Liv.º 9, fóls. 112v-113) um assento de 8 de Dezembro de 1745 que regista o falecimento de André Angêlo, veneziano, «no Porto da Banática e casas do Capitão António Dias Pinheiro que de presente se acha o Hospital dos Ingleses». (**)

(ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Lv. 9, fóls. 112v-113)

Estas casas correspondiam às da quinta do Porto da Banática, a qual fazia parte do Casal da Banática, um dos casais da Capela de Maria Pires Roubã, de que era administrador no século XVIII Monsenhor João Guedes Pereira, e tinham sido aforadas a António Dias Pinheiro em 13 de Setembro de 1704, e arrematadas em 1748 por Francisco Carneiro de Araújo e Melo (Vd. Carlos Gomes de Amorim Loureiro, Estaleiros Navais Portugueses. Subsídios para a história da construção naval de ferro e aço em Portugal, Vol. II: H. Parry & Son, Lisboa, 1965, pág. 44). Esta arrematação em 1748 pode indicar que entretanto o Hospital já fora transferido para outro local. (**)

De facto em 1758 encontramos um registo num dos livros de óbitos da Caparica com a notícia do falecimento de Francisco Rodrigues, morador nas Fontes Santas, no «Hospital da Nação Britânica cito no Porto da Arrábida, Freg.ª do Castello da Villa de Almada» e cujos últimos sacramentos aí lhe foram administrados pelo Pe. Nicolau Tolentino Seabra (que sabemos residia em 1762 no lugar do Pragal).

    (ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Lv. 10, fól. 132)

Uma descrição de José Baretti feita na sua visita a Almada em 1760 diz que o mesmo estava à beira rio para baixo de Almada para a banda do mar e quando visita a Arialva diz que voltou rio acima:
«desci a collina, voltei ao bote, e mandei aproar ao hospital dos inglezes, que fica do mesmo lado do rio, para baixo, para a banda do mar; mas não vi lá cousa nenhuma que parecesse extraordinária, excepto um medico já velho do hospital, um urso, que, tendo recebido aos setenta annos uma rapariga de dezoito, tornou-se, apesar de inglez, tão bestialmente ciumento, que se poz a olhar muito para mim de soslaio, quando viu que me dirigia para o jardim do hospital, porque sua mulher alli estava n'aquelle momento colhendo figos e uvas para o jantar (…) do hospital inglez, donde voltei, rio acima, para casa de um irlandez (Arialva) que negoceia em vinhos por grosso».
(Cf. José Baretti et Alberto Telles (trad. ital.), Portugal em 1760. Cartas Familiares (XV a XXXVIII) de José Baretti, Lisboa : Typ. Barata & Sanches, 1896, pp. 35-40 – Cit. Abrantes Raposo et Victor Aparício, Os Palmeiros e os Gafos de Cacilhas, Cacilhas : J.F., p. 57).

Esta descrição parece fazer coincidir este Hospital no Porto da Arrábida.

Em 1793, numa pintura de Noel com o título de «A view taken from Lisbon, the English Hospital and the convento of Almada», tudo parece indiciar que este Hospital estaria ou próximo do Convento de S. Paulo de Almada ou possivelmente em Cacilhas no local do Forte de Santa Luzia (mais tarde Guarda Fiscal). (*)

(Noel, «A view taken from Lisbon, the English Hospital and the convento of Almada», 1793)


De facto pelo menos já em 1776 se achava o Hospital dos Ingleses na Rua das Terras de Cacilhas, onde morava João O’Neill, de nação irlandesa, cfr regista o assento de óbito da sua mulher Cristina O’Neill datado de 29 de Fevereiro de 1776 . (***)

  (ADS-PRQ, Almada, S. Tiago, Óbitos, Livr.º de 1776, f. 193v)

A confirmação da localização em Cacilhas também vamos encontrá-la de novo num assento de óbito desta vez da freguesia de S. Tiago de Almada em 21 de Março de 1796 de Matheus Borch, solteiro de nação irlandesa, assistente no «Ospital de Cacilhas». (*)
 
(ADS-PRQ, Almada, S. Tiago, Óbitos, Lv. 6, fól. 43)

Em 1798 Heinrich Friedrick Link refere a existência, «logo abaixo de Almada, no sopé da colina, de um grande hospital inglês para a marinhagem, em especial a das frotas e que ficava junto a um armazém grande de vinhos». Um dos doentes que foi tratado naquele hospital foi o Almirante Francis Beaufort, o inventor da ainda em uso escala de ventos, que tendo sido ferido em 28 de outubro de 1800, aquando da captura do Navio Espanhol S. José, veio completar a cura em Almada onde, segundo refere, dava grandes passeios pelos arredores. Beaufort só veio a largar de Lisboa , findo o tratamento, em 18 de agosto de 1801. (Com. E. Gomes, id.).


(Almirante Francis Beaufort, 1774 + 1857, que passou pelo Hospital Inglês de Cacilhas entre 1800 e 1801)

Em 15 de janeiro de 1802 a Gazeta de Lisboa publicava o seguinte anúncio : «terça feira 19 do corrente mês, pelas 10 horas da manhã, na casa da praça do comércio se hão de vender em leilão vários restos de medicamentos, instrumentos de cirurgia, camas, lençóis, cobertores e outras pertenças do hospital da marinha britânica, sito no lugar de Cacilhas, aonde se poderão examinar os ditos artigos nos três dias antecedentes à venda».

Permanece pois algumas dúvidas quanto à sua localização exata, importa contudo referir que este Hospital de marinheiros ingleses era um hospital militar pois o hospital dos mercadores ingleses só veio ao ser edificado em Lisboa em 1793 pelo famoso comerciante inglês Gerard DeVisme.

Continua em:
Da Fonte da Pipa à Arialva, passando pelo Olho de Boi (3/3)


RUI M. MENDES
Caparica, 25 de Junho de 2012



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